Santiago M’Banda Lima
Santiago deu o seu testemunho na campanha Trans e Intersexo #DireitoASer, desenvolvida este ano pela CIG. A campanha vem dar voz a pessoas trans e intersexo, convidando a sociedade a ouvi-las e conhecê-las através de depoimentos na primeira pessoa sobre os seus quotidianos e a luta pelo reconhecimento dos seus direitos.
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Santiago M’Banda Lima
Queria reduzir as escolhas e ao mesmo tempo dizer-vos que todos os episódios que passei foram pesados e que eu queria dar uma luz positiva nisto tudo. Enquanto pessoa intersexo, vivi a maioria do tempo escondido, inclusive de mim mesmo. Nós, intersexo, nem sempre entendemos muito bem o que é que se passa com a nossa vida, muito menos com o nosso corpo.
Peço desculpa, pois ainda nem me apresentei. Eu sou o Santiago, nasci em Viseu, sou afro-português e também sou intersexo. “Porque importa isso tudo, Santiago?”, perguntam vocês. “Porquê que pessoas como eu têm de se afirmar tanto no mundo?”, pergunto eu e respondo: porque o resto do mundo não tem de pensar que nós existimos, ou nem sequer percebe a nossa existência. E porque vivemos vidas ostracizados em becos que não escolhemos viver.
As pessoas intersexo não têm as características sexuais do que é tipicamente considerado sexo feminino e sexo masculino. As pessoas intersexo, eram e ainda são chamadas de hermafroditas. E eu peço-vos que não nos chamem mais assim. É um termo derrogatório. A nível médico estamos dentro das categorias das doenças congénitas e existem pelo menos 40 variações intersexo, que se podem revelar conjunta ou isoladamente nas gónadas, genitália, massa muscular, cromossomas, distribuição de pelo, etc., portanto refletem-se nas variações das características sexuais secundárias e primárias – nós demos isto na escola.
A verdade é que não somos assim tão raros, claro, fazemos parte da sociedade desconhecida, e bem escondida atrás de um mito de que somos alguma espécie de aberração sexual. Ou que temos os dois sexos. Não somos aberrações. Não existem dois corpos iguais e a funcionalidade desses corpos não pode ser castrada para caber dentro de duas categorias de sexo rígidas, porque se pessoas nascem e/ou desenvolvem todo um espectro de características sexuais que não são reduzidas, bloquear isso não vai trazer benefícios ao pleno desenvolvimento do ser humano e à sua saúde.
O mundo, a vida, a terra, a natureza é mais do que possamos escolher, ver ou viver. Tem tantas perspetivas e realidades que vivemos na tendência de magoar e praguejar quem nos é diferente. Eu sempre, mas sempre fui visto como uma pessoa esquisita. Até podia não ser, eu podia estar na boa com essa parte da minha vida, mas eu não estava. Eu estava realmente preso. Onde o meu corpo começava a criar certas feições e características que eu até esperava, mas que não entendia o porquê e muito menos o mundo.
Porque eu vivi num secretismo até encontrar uma revelação ainda maior do que é o estigma que sofremos – por exemplo, uma médica quis me castrar quimicamente com uma injeção para tomar de 2 em 2 ou 3 em 3 meses – mas, por favor, não me continuem a perguntar porquê que nos fazem isto, porque realmente eu não posso continuar mais a justificar a minha existência e o meu corpo quando eu estou à vossa frente – pelo menos, em vídeo.
Em 2015, fiz come out no parlamento. Cofundei a Ação Pela Identidade já em 2011 e em 2015 tudo voltou a rodar. A nossa missão é informar o mundo, descategorizar as nossas experiências e identidades do preconceito e discriminação. Mas também é desmistificar os tradicionalismos nacionais de que termos direitos, de alguma forma desvirtua os portugueses. O que é querem fazer connosco? Meterem-nos numa solitária? OK, posso estar a ser drástico, mas percebem o que quero dizer. O salto para a minha visão foi-se construindo na estética que tanta vez me foi reclamada e negada ao mesmo tempo. Um mundo visual, mas não para todas as pessoas. Uma realidade omissa não quer dizer que não exista. E acreditem viver no secretismo ou longe da acessibilidade e à qualidade de vida é um isolamento que não deveria existir em pleno 2018.
Eu nunca pensei o que seria chegar a 2018, quase a fazer 29 anos. Sempre me considerei um artista e quando estava a pensar no que escrever, revisitei toda esta experiência de vida, que vem da minha paixão pelo ser, pela expressão, pela arte, pelo amor.
Eu sou artista, como faço a arte é conforme a vida me aparecer. Não descoro todo o meu trabalho de advocate, porque direitos humanos são necessários e necessitam ser revistos.
Eu sou o Santiago, #ESTEÉOMEUCORPO