Júlia Mendes Pereira
Júlia é um dos rostos da campanha Trans e Intersexo #DireitoASer, desenvolvida este ano pela CIG. A campanha vem dar voz a pessoas trans e intersexo, convidando a sociedade a ouvi-las e conhecê-las através de testemunhos na primeira pessoa sobre os seus quotidianos e a luta pelo reconhecimento dos seus direitos.
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Júlia Mendes Pereira
O meu nome é Júlia e sou uma mulher transgénero. Desde pequenina, tive de aprender a fazer-me mulher contra todas as expetativas. Agora, aprendo a desconstruir essa mulher para chegar à essência da minha identidade. Não vejo o ser mulher como mero sentimento. Vejo como algo que vem do mais profundo do meu ser, e que marca presença em todas as minhas ações, todas as minhas escolhas.
Não me lembro de alguma vez me ter visto de outra forma. Em criança, ainda antes de aprender a ler, ficou-me a memória de folhear uma revista onde aparecia uma mulher transgénero famosa. Fiquei impressionada com a beleza dela, nas fotos mais recentes e com uma produção profissional. Mas mais impressionada ainda fiquei com as fotos antigas, caseiras, da infância dela. Na minha idade, aquela mulher bem-sucedida tinha sido como eu. Não havia nada que me impedisse de ser também, um dia, uma mulher tão bem-sucedida quanto ela.
Ao longo da minha adolescência, nem sempre fui tão otimista. Nenhuma pessoa à minha volta parecia compreender quem eu era, que eu era uma rapariga. A puberdade tornou-se o maior pesadelo, que tentava negar a possibilidade dos meus sonhos de criança. Eu não encontrava palavras nem forma nenhuma que me permitisse expressar. Tentei a poesia, tentei a minha imaginação. Mas nada me salvou da depressão. Às vezes, gostava mesmo de dizer à Júlia que fui aos 16 anos: sorri, tu tens o direito a ser quem és.
Nunca desisti. Aos 16 anos já me tinha consultado com quase uma dezena de profissionais de medicina e psicologia (e em pouco tempo iria ultrapassar essa dezena) – todas estas pessoas queriam esmiuçar a minha vida, os meus pensamentos, a minha família, só à procura de me encontrar um problema, algo diferente da minha convicção da minha própria identidade. Mas eu era apenas uma rapariga à procura do meu lugar no mundo, como qualquer adolescente.
Foi perto de fazer esses mesmos 16 anos que entendi que esse mundo podia não ser um lugar seguro para mim. Agora, as revistas e os jornais mostravam-me que outros jovens, rapazes de idades aproximadas à minha, tinham assassinado uma outra mulher transgénero na cidade do Porto. A brasileira Gisberta, que gostava de interpretar algumas das minhas cantoras preferidas. Aqueles jovens, femicídas transfóbicos, não eram realmente diferentes dos meus colegas que me perseguiam com práticas de bullying, “brincadeiras de mau gosto”.
Desde sempre apaixonada pelos livros, às vezes distraída pelos filmes, acabei por encontrar o feminismo. E pude aprender com Simone de Beauvoir que “ninguém nasce mulher, faz-se mulher”, e assim foi-me revelado um outro mundo onde havia lugar para mim, onde eu podia existir. Fui estudar cinema à procura de formas de materializar esse mundo que se ia formando na minha cabeça, inspirada por realizadoras como a Sofia Coppola, mas o machismo que encontrei acabou por me desencorajar.
Fiz-me ativista pela esperança de poder mudar as coisas. Descobri que aprender e partilhar são as coisas mais maravilhosas que existem na vida. Aos 20 anos ingressei na Faculdade de Letras de Lisboa e, embora os meus documentos me atribuíssem outro nome, estava determinada a responder unicamente por Júlia. Conhecia já algumas pessoas trans que tinham passado por aquela ou outras faculdades, mas todas antes de assumirem o seu género. Eu ia ser a primeira sem medo da visibilidade, e orgulho-me por saber que depois de mim, várias pessoas trans ocupam esta e outras faculdades portuguesas, sem vergonha.
Pouco antes de fazer 21 anos, fui a primeira pessoa trans a conseguir os documentos corrigidos na conservatória do registo civil de Lisboa, visto ter entregue vários relatórios de diagnóstico, em (des)acordo com a Lei de identidade de género de 2011 – pela qual dei a cara, ao lado de mulheres fantásticas como, entre outras, a Jó, a Eduarda ou a Lara. No meu percurso, envolvi-me em várias formas de organização ativista, e tornei-me a primeira mulher trans a concorrer a cargos políticos em Portugal, e a pertencer à direção de um partido.
Ser a primeira em tantas coisas, às vezes cansa mais que aquilo que orgulha. É sempre a marca da invisibilidade e do silenciamento. No entanto, encontro-me ainda a escrever uma dissertação de mestrado pioneira, em torno do tema dos transfeminismos no Brasil e em Portugal, ao mesmo tempo que tenho trabalhado a minha visão do mundo em conjunto com pessoas com quem partilho várias afinidades, através da Ação Pela Identidade, onde a identidade se faz não só política, como arte.
Hoje, não tenho dúvidas do meu direito a ser quem sou. E se eu sou, é porque nós somos e temos direito a ser.