Campanha Trans e Intersexo #DireitoASer – Daniela
Daniela participou na campanha Trans e Intersexo #DireitoASer, desenvolvida este ano pela CIG. A campanha vem dar voz a pessoas trans e intersexo, convidando a sociedade a ouvi-las e conhecê-las através de testemunhos na primeira pessoa sobre os seus quotidianos e a luta pelo reconhecimento dos seus direitos.
Conheça a campanha completa: https://www.cig.gov.pt/acoes-no-terreno/campanhas/campanha-trans-intersexo-direitoaser/
Daniela
O meu nome é Daniela. Já há muitos anos que me lembro de assim ter sido. E já há muitos anos que assim sou reconhecida. Mas apenas há dois anos consegui oficializar este processo. Fez em Março dois anos que, perante o Estado, sou oficialmente a Daniela. Tenho quase 32 anos, ou seja, esperei até aos meus 30 para ver a minha identidade validada. Porém, a minha história não começa aqui, começa muito antes… muito antes.
Tinha poucos anos de idade, talvez 3 ou 4, quando comecei a ter alguma perceção do meu corpo. Digo alguma porque na época o meu conhecimento sobre o corpo era imediato, era relativo ao que via em mim ou nos que me rodeavam. Apenas isso. Conhecimento elementar. Lembro-me nesse tempo de imaginar-me crescer e projetar a minha corporalidade na corporalidade da minha irmã. Alguns anos mais tarde, ela entrava no período da menstruação e foi apenas, e só apenas aí, que tive consciência que não, que não seria este o caminho que o meu corpo ia seguir. Na mesma época tinha começado a aprender sobre aparelho reprodutor na escola e essa imagem perturbou-me imenso. Durante muito tempo continuei a projetar-me em mim numa imagem de feminilidade que conhecia, vestia-me às escondidas com o que eu achava ser de rapariga, usava laranjas para fingir que tinha mamas. Era um processo que me deixava positivamente animada e feliz. A inocência da infância durou pouco tempo…
Vem a vergonha.
Durante os anos seguintes encolhi-me em mim. Investi no que fazia muito bem: na escola. Nunca falei disto a ninguém, achava que tinha um problema, que era doente, que tudo isto seria uma fantasia da minha cabeça. Porém, quanto mais pensava nessa fantasia, mais obsessiva a ideia se tornava. Era um requisito, era uma parte abandonada do meu eu que estava a ficar trás. O silêncio foi-me matando aos poucos. Vale a pena dizer que vim de um meio pequeno, ultraconservador, problemático. A minha vida tinha altos e baixos que eram difíceis de separar das várias coisas que me iam acontecendo e da minha própria descoberta identitária. No entanto houve um período de estagnação. Precisava de me redescobrir novamente. Os modelos sociais atribuídos a rapazes e/ou a raparigas não me faziam sentido. Porém, sentia-me compelida a ter um papel bem definido na sociedade. Penso que foi neste momento que o meu real processo desconstrutivo começou: a minha crítica às normatividades – apesar de que não tinha linguagem para descrever o que sentia e me atingia.
Aqui vem o meu empoderamento.
Anos mais tarde, com a minha ida para Lisboa, tudo mudou. Vi neste espaço uma oportunidade de me procurar e me descobrir. Vi neste espaço um meio para atingir um fim. Rapidamente comecei a ser conhecida como Daniela em vários meios, participei na construção de comunidades: a Daniela assumia uma feminilidade, o Daniel assumia um papel alternativo, fora dos padrões sociais. Continuei a procurar-me ao longo dos anos, a desconstruir o meu próprio papel na sociedade. A entender se o meu desejo era uma expressão de feminilidade, se era uma performance social ou se era corporalidade. A corporalidade era um ponto importante, no entanto não tinha referências. Depois de desconstruir todos estes estereótipos associados ao género entendi que a minha questão era bastante mais profunda. Era identitário. Não era uma questão de como me apresentava, mas de quem eu era. Até ao momento, em processo terapêutico, já tinha discutido várias coisas: ter uma identidade diferente da norma, ter uma sexualidade diferente da norma, ter um padrão relacional fora da norma. Tudo me fazia concluir que possivelmente o problema seria meu. No entanto, decidi que este seria o caminho e quando finalmente consegui dar um nome ao que sentia – ser trans – decidi procurar como mudar o meu nome e, se assim o desejasse, partes do meu corpo. Nunca senti que este não era o meu corpo, senti que deveria poder ajustá-lo à minha medida. Na clínica aprendi a fazer o processo inverso… se tinha desconstruído, passei a ser compelida a perpetuar estereótipos de género, só assim seria válida, só assim seria verdadeira. Rapidamente percebi que isto não fazia sentido nenhum e, na mesma época percebi que existia o conceito de pessoas que não se identificavam com nenhum género: pessoas agénero. Encaixou. A minha desconstrução fazia agora mais sentido. Largar toda a construção social em cima de princípios biológicos, mas não ignorando as suas problemáticas. A minha identidade fazia-me sentido, mais do que nunca.
Hoje em dia olho para trás e vejo que muitas das minhas dificuldades estavam associadas a um choque entre a minha identidade e aquilo que se esperava de mim enquanto pessoa designada à nascença enquanto rapaz. O meu processo era continuamente de confrontação. Houve momentos em que exercitei a normatividade, sentia que isso me poderia ajudar a esquecer toda a minha identidade base, mas não aconteceu. Não podia acontecer. Simplesmente vivi em contínuas dificuldades. Se hoje tudo é diferente? É. No entanto a minha não binariedade ainda não é reconhecida. Porém, devido ao meu processo de crescimento e à minha auto-perceção é o género feminino que pretendo ver-me reconhecido. Pois, é no género masculino que não me revejo de todo e que tenho imensas dificuldades em vivenciar identitariamente. Posso perguntar o que para mim é ser homem ou mulher… não sei, mas sei o que é ser eu e sei o que desejo para mim e sei o que me faz procurar uma identificação ou outra. Sei desses motivos, como sabia há quase 30 anos que havia uma projeção que tinha começado a fazer de quem poderia ser eu no futuro. Explicar tamanha coisa é difícil, principalmente quando não queremos cair no essencialismo ou no estereótipo: por isso apenas posso dizer que há uma noção de mim tão profunda que me faz procurar fazer tamanhas mudanças. Não é uma decisão impulsiva.
Passados 20 anos, hoje não sinto vergonha de ser quem sou. Sou a Dani, legalmente a Daniela, sou uma mulher trans e não binária. Para além disto sou muito mais, sou engenheira de software, sou estudante de astrofísica… faço fotografia e adoro escrever. Faço caminhadas, adoro uma boa conversa com os amigos e adoro todas as paixões e amores com que me vou relacionando. Sou uma pessoa que gosta da vida. Ser trans é apenas um pedaço de mim, um pedaço pelo qual luto todos os dias. Um pedaço que me faz perder horas de sono, que me faz ter de gerir expectativas, que me faz pensar no que será o meu futuro. Quase 30 anos depois estou muito diferente. Já não é a roupa ou o corpo que me faz quem sou… sou eu que me encontro, sou eu que me descubro.
Se agora sou feliz? Sou. Se agora acho que é possível? Acho. Se agora acredito num mundo mais justo? Acredito. Se agora descubro a realidade? Descubro.