Presidente da CIG aborda a liberdade das mulheres 50 anos após o 25 de Abril
O Jornal Público celebrou o 34.º ano com a conferencia “Ser Mulher em Liberdade”, com o intuito de discutir o que se passa nas empresas, o que falta nas políticas, o que mudou nas famílias e as transformações que impedem o progresso.
O evento contou com a intervenção da Presidente da CIG, Sandra Ribeiro, que, realçando os vários avanços alcançados, como é exemplo a consagração do direito ao aborto na Constituição francesa, defendeu que os direitos das mulheres têm de ser olhados como direitos fundamentais e lamentou que a liberdade seja algo que hoje ainda é negado a algumas mulheres.
Por fim, garantiu a continuidade da luta pelos direitos das mulheres, afirmando que “estamos habituadas a lutar. Vamos conseguir e vamos continuar”.
Leia o discurso na íntegra.
“Ser mulher em liberdade.
Muito boa tarde a todas e todos.
Agradeço o convite feito pelo Jornal Público, e aproveito para agradecer enquanto mulher, feminista, a realização desta conferência e todo o destaque que têm dado à igualdade de género no vosso jornal diário.
Recebemos a notícia, ontem, que o Parlamento francês aprovou a introdução do direito à interrupção voluntária da gravidez na constituição, como um direito fundamental.
Para França, que já legalizou o aborto exatamente há 50 anos, é um ato simbólico. Mas um ato que consideraram necessário.
É um anúncio público, para o país e para a comunidade internacional, de que há direitos conquistados pelas mulheres, direitos fundamentais das mulheres, que não são discutíveis, que são irrevogáveis e irreversíveis, que não podem ser usados como arma de arremesso em mudanças partidárias.
Da esquerda à direita, ao centro, os direitos das mulheres têm de ser olhados como direitos fundamentais.
Parece um pensamento la palice, mas não é. E tanto não é, que demorou muito tempo até alguém ter tido coragem de o dizer numa reunião internacional.
Aconteceu em 1995, num discurso de Hilary Clinton, então na posição de primeira-dama dos EUA, na quarta conferência mundial das mulheres, organizada pelas Nações Unidas,
Leio-vos um pequeno excerto desse discurso:
“A comunidade internacional há muito que reconhece que tanto as mulheres como os homens têm direito a um conjunto de proteções e liberdades, desde o direito à segurança pessoal até o direito de determinar livremente o número de descendentes que geram.
Ninguém deve ser forçado a permanecer em silêncio por medo de perseguição religiosa ou política, prisão, abuso ou tortura. Tragicamente, as mulheres são, na maioria das vezes, aquelas cujos direitos humanos são violados.
Mesmo no final do século XX, a violação de mulheres continua a ser utilizada como instrumento de violência armada nos conflitos armados. As mulheres e as crianças constituem a grande maioria dos refugiados do mundo. Quando as mulheres estão excluídas do processo político, tornam-se ainda mais vulneráveis a abusos.
Acredito que é hora de quebrar o nosso silêncio. É hora de dizermos aqui, e o mundo ouvir, que já não é aceitável discutir os direitos das mulheres como algo separado dos direitos humanos.”
Quase 30 anos volvidos, continua um discurso atualíssimo. Pensemos no Afeganistão, no Irão, em Gaza, na Ucrânia, na India, e poderíamos referir tantos outros.
Pensemos nos retrocessos, alguns cirúrgicos, feitos à medida, que acontecem em tantos países do mundo.
Para muitas mulheres neste mundo, viver em liberdade é algo apenas sonhado, perante uma comunidade internacional incapaz de ajudar esses sonhos a se tornarem realidade.
Tem de haver mais debate público sobre este tema. As políticas externas dos países democráticos, e que defendem internamente políticas de promoção da igualdade de género, têm de fazer repercutir essa dimensão nas suas relações externas.
Em 2011, a Suécia criou o conceito de política externa feminista, que implicava que todas as negociações e acordos que firmasse com outros países teria sempre de ter uma dimensão de igualdade de género associada. Infelizmente tal conceito não parece ter vingado, o que é realmente pena, e até constrangedor, porque nos faz viver e conviver com a violação de direitos humanos diariamente, de direitos das mulheres, sem realmente termos a comunidade internacional a atuar. É com as outras; e enquanto for com as outras nada se faz.
Mas descentremos do mundo, esse lugar tão grande, e olhemos para Portugal, comparativamente tão pequeno.
2024, o ano das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril.
Impossível não relacionar a democracia com a liberdade, com a igualdade entre mulheres e homens.
De facto, em termos de atropelo dos direitos das mulheres, o nosso passado é negro.
As nossas mães e avós nasceram no tempo em que legalmente eram consideradas inferiores. Era-lhes passado um atestado de inferioridade assim que nasciam. E todo o sistema estava organizado para garantir que essa inferioridade não era posta em causa.
Abril mudou tudo, ou melhor, quase tudo…
Direitos como “o voto universal para as mulheres conseguido nas primeiras eleições pós 25 de abril” – o mesmo direito tinha sido conseguido pelos homens em 1945;
A “abolição da permissão legal de morte da mulher ou filha até aos 21 anos de idade, por parte respetivamente do marido e/ou pai, nos denominados ‘crimes de honra’”;
O acesso à educação, que trouxe uma mudança profunda na nossa sociedade. Nos anos 60, perto de 70% das mulheres portuguesas nunca tinha ido à escola.
O direito à liberdade sexual, à saúde reprodutiva e ao planeamento familiar … que não foi logo imediato, é certo, mas o caminho começou a ser trilhado, com perseverança, até ao segundo referendo que permitiu a legalização do aborto.
O direito à participação no mercado de trabalho, sem restrições legais no acesso a determinadas profissões – embora muitas restrições invisíveis se mantenham até hoje;
A liberdade de sair do país e viajar, sem autorizações prévias de pais ou maridos;
O direito ao divórcio por mútuo consentimento e civil para os casados pela Igreja;
A participação política, reforçada mais tarde pela lei da paridade;
E, obviamente, o direito à igualdade e não discriminação entre mulheres e homens, consagrado na Constituição de 1976.
Volto ao início desta intervenção, e à importância simbólica e política de consagrar na lei fundamental os direitos das mulheres, reconhecidos como liberdades e garantias, que a lei ordinária não pode mudar.
Muitas vezes diz-se que a sociedade não muda por decreto. Não concordo. O decreto, a lei, a constituição, são a legitimidade suprema para a consagração dos direitos. Poderão dizer que uma coisa é o direito legislado, outro é o direito aplicado. Verdade. Mas sem a consagração legal, a voz de quem é discriminado no dia a dia é apenas o silencio, sem esperança. Se a consagração legal existir, pode não ser fácil a sua aplicação generalizada, mas é o instrumento mais poderoso que conhecemos.
E hoje, volvidos 50 anos de Abril, temos um sistema jurídico em Portugal bastante igualitário. Foi também trabalho da Comissão da Condição Feminina, antecessora da CIG, que logo a partir de 1976 se dedicou a rastrear toda a legislação discriminatória que existia em Portugal, propondo a sua revogação e propondo a criação de novas disposições legais igualitárias, e a ratificação de convenções internacionais de defesa e reconhecimento dos direitos das mulheres.
Mas como se sentem as mulheres em Portugal em 2024? Qual a sua perceção enquanto mulheres em liberdade?
Passei estes últimos dias a perguntar a várias mulheres se eram livres. Se se sentiam mulheres em liberdade.
Aproveitei inclusive o fim de semana em que fui a uma festa de aldeia para fazer também essa pergunta, tentando assim um universo, pequeno, é certo, mas diversificado, de mulheres, diferentes idades, diferentes níveis culturais e académicos.
Recebi respostas muito diferentes; vou ler-vos algumas, para terem uma ideia:
Quando eu penso em liberdade, penso em mil oportunidades para fazer coisas e sentir-me feliz. Mas tenho a noção que não é uma coisa nada fácil. E ainda não consegui lá chegar.
Eu sou desportista. Para mim liberdade é quando estou no campo e estou a fazer o que eu adoro. Poder seguir o meu sonho e ser a pessoa que eu sou. Eu sei que se tivesse nascido há uns anos provavelmente não tinha esta oportunidade sem me olharem de lado por ser mulher, lésbica e adorar futebol.
Vejo muita gente nova que já nem considera a liberdade como um direito, é algo que faz parte de ser humano. Mas nós temos de os lembrar que isso não é necessariamente assim.
Olhe, para mim acho até que há liberdade demais agora, e depois elas já nem sabem o que fazer com ela.
Eu adoro ser mulher e ter liberdade. Mas a liberdade nunca é total pois não? Quer dizer, quando uma pessoa casa e tem filhos há sempre parte da sua liberdade que desaparece. Tem de tomar conta deste e daquele, tem de ir comprar comida todos os dias, tem de cozinhar todos os dias. Agora fiquei aqui a pensar, livre era eu se tivesse ficado solteira e sem filhos.
Eu nunca fui livre verdadeiramente. Tive sempre limitações que me eram impostas. Nasci no tempo da outra senhora. Em jovem não vestia o que queria, era o que me permitiam. Tinha de ir à missa e eu que nem acreditava em Deus. Nunca acreditei. Mas até pela igreja tive de casar. Ir lá fazer o frete para a família ficar feliz e os vizinhos não comentarem. Isso puxou-me mais para o campo. Quando estou sozinha a tomar conta dos animais estou à minha vontade estou feliz. Acho que isso deve ser a liberdade.
Sim. As mulheres são livres. Mas os homens de uma forma geral são mais. O termos de ser nós a tomar conta das crianças e dos doentes e idosos, bom, tira-nos campo de manobra. Eu só consegui progredir na carreira quando os miúdos já eram adolescentes porque deixei de estar tão presa com eles.
Eu sinto que posso fazer o que eu quiser. Estou a terminar o curso. Acho que vou tirar um estágio algures num outro país qualquer. E adoro esta sensação de que posso ir a onde eu quiser. Adoro mesmo.
As mulheres para serem mesmo livres tinham que não ter medo de ser assediadas na rua. Eu detesto quando passo por homens na rua, às vezes com idade para serem meu pai e me dizem obscenidades. Que nojo.
Essa pergunta a mim só me dá é vontade de chorar. Fui vítima de violência doméstica durante 16 anos. Eu sei bem o que é não ser livre. Ter medo. Ser subjugada em pleno séc. XXI, por um homem, só porque eu sou mulher e ele é homem. Consegui sair daquilo graças ao apoio de outras mulheres. Hoje sou mais livre.
Aí, para mim liberdade é poder fazer isto. Combinar com as minhas amigas e vir dançar. Sou viúva. Tenho muita pena do meu marido, que já lá está, que gostava muito dele. Mas a verdade é que me divirto muito mais agora com as minhas amigas. Não volto a casar.
Sempre presei muito a minha liberdade. Nem sempre é fácil. Mas acho que também é uma questão de postura. Não tenho medo do que as outras pessoas possam pensar de mim. Não ligo a juízos de valor. E se acho que me estão a prejudicar digo logo. Calada não fico.
Pois então, a mulher não tem mais liberdade porque não tem coragem para dizer basta. Se disserem, ganham mais respeito. Acho eu. Essa ideia de que temos de amochar ao que eles querem para mim não. O amor é muito bonito, mas não pode ser uma gaiola. Lá em casa é tudo dividido. Hoje fico com os miúdos amanhã fica ele. E damo-nos muito bem.
Concluindo, vivemos em liberdade, mas sermos livres não é fácil.
Interessante, que o que ouvi hoje de manhã não é muito longínquo daquilo que por curiosidade fui perguntar a mulheres anónimas, e daquilo que eu própria sinto enquanto mulher, de 50 anos, que não viveu a ditadura, já nasceu com a democracia, presentemente é Presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.
Temos políticas públicas de igualdade em vigor há vários anos. E muitas delas produzem efeitos positivos. Fizemos progressos evidentes no uso partilhado das licenças parentais, há rede de creches em todo o território, a maior parte da população licenciada é feminina, temos cada vez mais mulheres no mercado de trabalho, muito embora ainda se mantendo tendência de segregação profissional. Temos mais mulheres na política, mais mulheres em cargos de direção. Temos mais educação para a cidadania (e também mais contestação à educação para a cidadania).
Mas, a verdade é que ser mulher em 2024, ser trabalhadora, querer ser mãe, querer progredir na carreira, é uma grande pressão. E é muito duro, e muitas vezes obriga a decisões que mesmo que tomadas conscientemente, não são exatamente livres.
O desequilíbrio endémico na partilha das tarefas domésticas continua a ser um forte limite à liberdade das mulheres.
Muitas de nós, achamos que é possível fazer tudo ao mesmo tempo, mas normalmente acabarmos de rastos e a sentir culpa. E há outra forma de conseguir fazer tudo ao mesmo tempo, que é fazendo outsorcing do cuidado dos filhos e filhas ou outros dependentes. Não é viável para todas as bolsas, não pode ajudar todas as mulheres, só para quem pode. Mas é uma solução para conciliar, só não alivia a culpa, de quando se chega a casa e nos dizem, como me disseram: Boa noite, o Xavier começou a andar hoje, tão querido. Pena que a mãe não tenha assistido. O pai, entretanto, chegou também, mas não recebeu o mesmo recado.
Para sermos livres temos de nos livrar da culpa. E para isso temos de nos livrar do preconceito que está entranhado de que o cuidado é essencialmente das mulheres. Não tem de ser!
Os dados de que dispomos dizem que Portugal é dos países em que há mais diferença de tempo que mulheres e homens gastam em tarefas domésticas por dia.
Elas mais duas horas por dia que eles, e aumenta para quatro horas ao fim de semana.
Estes dados são preocupantes, principalmente perante uma sociedade que está a envelhecer, em que a pirâmide demográfica está invertida, em que cada vez há mais pessoas para serem cuidadas, e onde sabemos que a maioria das pessoas que cuidam, informal ou formalmente, são mulheres.
Estou convencida que apostarmos nas políticas públicas que promovam uma divisão mais justa de tarefas, por exemplo formarmos cada vez mais e mais cedo para a igualdade, nos irá conduzir a conseguir partilhar mais as tarefas domésticas e de cuidado. Sem essa partilha será sempre difícil sentirmos mais livres, com menos culpa.
Sabemos que não é fácil. Mas também nunca nada foi fácil para nós. Mas estamos habituadas a lutar.
Vamos continuar!
Obrigada”