A revolução queer por vir: diversidade sexual e de género ao longo da vida
Artigo de Ana Cristina Santos*
A 17 de maio celebra-se o dia de luta contra todas as discriminações com base na orientação sexual, identidade de género e características sexuais (IDAHOTIB). Esta data, escolhida por coincidir com o momento em que a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da sua lista de doenças em 1990, é marcada por eventos nas mais diversas instituições nacionais e internacionais.
Também em Portugal, este marco histórico tem sido assinalado. Este ano, a celebração reveste-se de uma importância acrescida, recordando os 40 anos da descriminalização da homossexualidade no contexto português, mote de uma Conferência em Lisboa nos dias 27 e 28 de maio. Quarenta anos depois, Portugal encontra-se no pódio da igualdade LGBTI+, considerado líder em áreas como o reconhecimento jurídico ou a baixa incidência de crimes de ódio. De acordo com o Rainbow Map 2022 recentemente divulgado pela ILGA Europa, Portugal está hoje entre os 7 países europeus com leis mais inclusivas. Apesar de ter descido da 4ª para a 7ª posição face a 2021 – fruto da decisão do Tribunal Constitucional de devolver ao Parlamento a responsabilidade, até agora adiada, de proteger crianças trans e de género diverso em meio escolar –, estes são dados que nos devem alegrar e que resultam de um longo caminho percorrido sobretudo por ativistas, mas também por intelectuais e demais interlocutores com responsabilidade política e científica. A este respeito realce-se que, pela primeira vez em 732 anos, a Universidade de Coimbra se prepara para se associar às celebrações públicas do 17 de maio. No entanto, o que os números escondem deve permanecer motivo de atenção, nomeadamente no que toca à diversidade interna, interseccional e ao longo da vida.
Os estudos que temos acompanhado revelam a importância de tomar seriamente uma luta que, estando parcialmente ganha no papel, ainda de se debate com grandes resistências no quotidiano. Onde estão as formações em medicina e enfermagem atentas à saúde sexual e reprodutiva de mulheres lésbicas e bissexuais? Quais as medidas de ação positiva para colmatar a precariedade laboral que afeta pessoas trans e não binárias? Em que ponto estamos na discussão sobre desporto inclusivo, que não classifique atletas em função do sexo atribuído à nascença, mas sim em termos de IMM ou indicadores semelhantes? Para quando o reconhecimento social e jurídico de pessoas intersexo, não-binárias e pansexuais? Por que razão continuamos a ter denúncias de bullying homofóbico em meio escolar? De que forma é feito o acompanhamento ginecológico e obstetrício de homens trans que menstruam e engravidam? E para quando a criação de unidades curriculares centradas na diversidade sexual e corporal que sejam transversais a todas as áreas de educação e formação profissional?
Estas são algumas das inquietações decorrentes de investigação científica na área dos Estudos LGBTI+ em anos recentes. Entre os projetos em curso, uma atenção à diversidade sexual e de género ao longo da vida tem assumido um peso crescente. Esse enfoque compreende, por exemplo, questões associadas à infância e adolescência LGBTI+. Com o projeto Diversidade e Infância, conhecemos o forte défice de formação curricular e profissional que afeta profissionais que acompanham crianças no âmbito da saúde e da educação, mas também na intervenção comunitária, intervenção familiar e nos media. Já com o projeto Infâncias Arco-Íris, está a constituir-se um Conselho para a Infância LGBTI+, feito por e para crianças e adolescentes, procurando validar formas de intervenção adequadas a este público-alvo.
Mais recentemente, começamos finalmente a percorrer um caminho centrado no envelhecimento de pessoas LGBTI+. Em 1982, oito anos após o fim da mais longa ditadura da Europa ocidental, a homossexualidade tornou-se finalmente legal em Portugal. Esse mesmo ano coincidiu com o surgimento da chamada crise da sida, cujo estigma ancorado no desconhecimento levou a que pessoas cujos afetos e corpos recém descriminalizados fossem agora submetidos a uma nova forma de armário visando evitar discriminação adicional. A partir dos anos 2000, esta mesma geração, agora bem mais madura, é confrontada com uma cultura idadista orientada para a juventude, cujas práticas e prioridades parecem desajustadas face às expetativas e necessidades das pessoas LGBTI+ mais velhas. Tendo permanecido num armário porventura demasiado longo para ser desfeito por decreto, e tendo sido privadas ao longo da vida de condições socioculturais conducentes a redes de parentesco e cuidado, terá o amplo reconhecimento dos direitos LGBTI+ no Portugal contemporâneo chegado demasiadamente tarde para pessoas acima dos 60 anos?
Estudos anteriores demonstram que a população LGBTI+ sénior é particularmente afetada por processos de isolamento e solidão relacional que levam a uma invisibilidade acrescida. Esse silêncio é gerador de mal-estar e traduz-se numa perda comunitária de valor incalculável, uma vez a população LGBTI+ sénior detém uma memória coletiva preciosa, própria de sobreviventes de longa duração. Esta é uma realidade que urge entender procurando, a partir desse conhecimento, ajustar medidas de intervenção no terreno que deem resposta às necessidades e expetativas de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo mais velhas. É justamente esta a prioridade do projeto REMEMBER, em curso no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e também da investigação TRACE, a decorrer entre 2023 e 2027 em Portugal, Itália, Eslovénia, Grécia e Malta, e cuja proposta acaba de ser premiada pelo Conselho Europeu de Investigação.
Em suma, o reconhecimento jurídico diz-nos pouco acerca do desconhecimento na prática, do insulto insidioso, da ostracização em determinados contextos e com nuances ao longo da vida. As estatísticas sobre crime escondem todos os incidentes que não resultam em queixa, as formas de violência camuflada, os abusos de que não se fala por medo de represália. O cumprimento da lei na prática é responsabilidade de cada um/a de nós. Para tal, precisamos de mais e melhores mecanismos de reporte e monitorização da aplicação das leis que visam garantir igualdade e não-discriminação de pessoas LGBTI+. Precisamos de dados oficiais, incluindo estatísticos, bem como de linhas específicas de financiamento à investigação na área dos Estudos LGBTI+. Precisamos que as associações no terreno disponham de recursos estáveis para assegurar, de forma sustentada, o imprescindível trabalho de proximidade que permite salvar vidas. E precisamos que a luta contra a discriminação LGBTI+ se transversalize, ocupando todos os lugares de interação social.
Como vimos, até no pódio da igualdade LGBTI+ se registam ausências significativas. Tendo chegado até aqui urge prosseguir, porque nem mesmo os direitos adquiridos estão imunes aos ataques de quem falha em perceber que todo o preconceito é um insulto à dignidade humana.
* Socióloga e Investigadora Principal em Estudos de Género no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra