A Participação das mulheres na política – um olhar especial no poder local
Maria Helena Santos, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), CIS-IUL
A sub-representação das mulheres na política é um fenómeno universal como poucos. Perante a consciência desta desigualdade injusta, mais de uma centena de países, de diferentes partes do mundo, adotaram uma postura mais proativa nas últimas décadas, recorrendo a várias medidas de ação positiva, com o intuito de solucionar este problema social de uma forma mais rápida e eficaz.
Nesta fase, podemos já afirmar que medidas como as “quotas voluntárias dos partidos” e a “Lei da Paridade”, adotadas por 23 dos 28 países da União Europeia, inclusive por Portugal (Lei Orgânica nº 3/2006, de 21 de agosto, implementada no ciclo eleitoral de 2009 e já várias vezes documentada), constituíram um grande passo relativamente à promoção da igualdade de género na política, tendo, sem dúvida, contribuído para aumentar o número de mulheres neste contexto.
Apesar disso, a política continua a ser estruturada pela divisão sexual do trabalho e a “feminização” ainda não é acompanhada por uma verdadeira partilha do poder entre os homens e as mulheres políticos/as. Tal significa que, na política, as mulheres continuam a ser uma minoria, não só por serem menos numerosas do que os homens no contexto, mas, e sobretudo, porque eles continuam a dominá-lo e elas continuam a ter de lutar para legitimar o seu lugar. Dito de outra forma, as medidas foram, sem dúvida, benéficas, no que concerne à representação descritiva das mulheres na política, mas ainda é cedo para gerarem mudanças em termos da sua representação mais substantiva no contexto do poder e da tomada de decisão.
De facto, os dados internacionais mostram que esta realidade, claramente discriminatória, tem vindo a mudar nos vários continentes, muito graças a medidas deste tipo, registando-se já um aumento do número de mulheres em posições de liderança nas instituições políticas legislativas e executivas em diversos países do mundo, situados em África, na América Latina e na Europa.
Ao nível dos parlamentos nacionais, por exemplo, a União Interparlamentar mostra que, em dezembro de 2005, o Ruanda (48,8%), a Suécia (45,3%) e a Noruega (37,9%) ocupavam os três primeiros lugares do ranking mundial, em 187 países. Portugal, que só viria a implementar a Lei da Paridade em 2009, situava-se, na altura, em 42º lugar, com apenas 21,3% mulheres no Parlamento.
Atualmente, o Ruanda (61,3%) mantém-se no 1º lugar, mas é seguido pela Bolívia (53,1%, que em 2005 se encontrava em 64º lugar, com apenas 16,9% de mulheres) e por Cuba (48,9% de mulheres, que em 2005 se encontrava em 8º lugar, com 36%) que, com a implementação de medidas de ação positiva, ultrapassaram os países do Norte da Europa, historicamente mais igualitários. A Lei da Paridade também levou Portugal a subir para 29º lugar (34,8%), estando agora entre os 30 países mais paritários do mundo, em 193 países.
Apesar da evolução positiva registada nos últimos anos, os meios (i.e., as medidas “artificiais”) utilizados para atingir a igualdade têm gerado fortes controvérsias sociais, o que tem despertado o interesse por parte da academia, levando à produção de mais conhecimento sobre o tema. É, agora, consensual que a realidade (assimétrica) existente entre mulheres e homens na política, resulta de processos muito complexos e da interação de diversos fatores (e.g., culturais, situacionais, institucionais, estruturais e ideológicos) que, por estarem profundamente enraizados nas estruturas sociais, tornam mais difícil a mudança para a igualdade.
A investigação tem vindo, por exemplo, a tornar clara a influência do género nesta questão, constituindo, sem dúvida, uma das grandes barreiras ao maior progresso da igualdade de participação entre mulheres e homens, tanto ao nível nacional, como local.
Esta influência é particularmente evidente na distribuição das pastas ministeriais (continuando os homens a dominar as chamadas pastas “hard”, relativas à defesa, à justiça e à política externa, e as mulheres a ocupar mais as pastas ditas “soft”, relativas à educação, à saúde e à cultura); no cargo de primeiro-ministro (por exemplo, em Portugal, só uma mulher ocupou o cargo e apenas durante cinco meses – Maria de Lourdes Pintasilgo – sendo indigitada Primeira-Ministra, em 1979, para chefiar um Governo de iniciativa presidencial); e nos cargos de presidentes ao nível nacional (nenhuma mulher ocupou o cargo de Presidente da República no nosso país), mas também ao nível local (o número de cargos de Presidente de Câmara ocupados por mulheres constitui um bom exemplo disso, tendo atingido o seu máximo nas eleições autárquicas de 2009, com 23 mulheres a ocuparem o cargo, em 308 câmaras existentes, ou seja, a percentagem verdadeiramente irrisória de 7,5%, onde estagnou).
Estes resultados são reveladores da fraca evolução existente neste âmbito, percebendo-se não só que há resistências, mas também que o “espírito” da lei (a representação paritária) não foi ainda verdadeiramente interiorizado pela elite política, fenómeno particularmente visível quando olhamos para os cargos políticos onde a Lei da Paridade não se aplica, como os apontados.
É certo que, embora este tipo de medidas constitua um mecanismo crucial para redinamizar o progresso no sentido da igualdade de género, não é uma condição necessária, como se verifica pelos casos (raros) da Finlândia (42,0%) e da Dinamarca (37,4%), mas também não é uma condição suficiente, como ilustra o caso do Brasil (10,7%). Para assegurar a promoção de uma igualdade de género mais efetiva poderão ser desenvolvidas diversas ações e estratégias alternativas ou complementares, seja por parte da sociedade civil, seja pelos partidos políticos, ou pelo parlamento e pelos órgãos do Estado.
Em Portugal, é evidente que, ao nível do poder local, a evolução para a igualdade tem sido mais lenta, havendo já quem se questione se não serão necessárias medidas alternativas à Lei da Paridade. De facto, uma década após a sua adoção, a participação das mulheres na política autárquica continua abaixo do requerido pela mesma (33,3%) em todos os órgãos.
A escassa evolução registada a este nível já tinha sido salientada em 2005, por Albertina Jordão, após uma análise de três eleições locais, realizadas em Portugal (1993, 1997, 2001), e em 2008, por Pedro Nunes, após uma análise sobre a participação das mulheres na administração local autárquica nos últimos 25 anos (entre 1982 e 2005), levando a concluir que a representação das mulheres na política local continuava “confrangedoramente baixa”.
O balanço das eleições autárquicas de 2009 também foi menos positivo do que o esperado, embora a percentagem total de mulheres nos órgãos autárquicos tenha aumentado oito pontos percentuais, passando de 19,3 para 27,6%. Na altura, foram identificadas resistências à mudança por parte do sistema, sendo contornadas e violadas diversas listas. Com efeito, neste ano, dos cinco grandes partidos com assento parlamentar, violaram a Lei da Paridade 53 listas apresentadas a 308 concelhos, câmaras e assembleias municipais (21 listas da CDU, 19 do PS, 6 do PSD, 5 do CDS-PP e 2 do BE). Também foi percetível a decisão adotada pelos partidos políticos (salvo algumas exceções, nomeadamente por parte do BE) de cumprirem o “mínimo” na composição das listas, colocando, frequentemente, as mulheres em 3º, 6º e 9º lugares das listas, ou seja, o último lugar obrigatório para cumprirem a Lei da Paridade.
Esta é, certamente, uma das razões pelas quais os resultados das eleições autárquicas de 2009 ficaram aquém do que se pretendia com a Lei da Paridade, sobretudo ao nível dos órgãos executivos (da Câmara Municipal e da Junta de Freguesia, com 25,3% e 20,2%, respetivamente), onde a percentagem de mulheres foi bastante mais baixa do que nos órgãos deliberativos (na Assembleia Municipal e na Assembleia de Freguesia, com 30,0% e 30,3%, respetivamente).
Nas eleições de 2013 o espírito manteve-se mais ao menos o mesmo que nas eleições anteriores. Segundo a Direção-Geral de Administração Interna, a percentagem total de mulheres nos órgãos autárquicos pouco aumentou (31,1%), continuando bastante mais baixa nos órgãos executivos (na Câmara Municipal e na Junta de Freguesia, com 26,6% e 26,1%, respetivamente) do que nos órgãos deliberativos (na Assembleia Municipal e na Assembleia de Freguesia, com 31,7% e 33,2%, respetivamente). Tal resultado é revelador das fortes resistências à mudança existentes, mostrando que, apesar da implementação de uma lei que pretende promover a igualdade de género, o poder autárquico continua a ser dominado pelos homens.
Dois estudos recentes (um estudo com entrevistas a 22 mulheres políticas dos cinco grandes partidos em atividade ao nível local no Centro e Norte de Portugal e outro estudo com entrevistas a 19 pessoas chave do PS, envolvidas no poder político europeu, nacional e local) vieram confirmar que a implementação desta lei ainda não perturbou a ordem social de género que estrutura a política local, permanecendo uma hierarquia assimétrica entre homens e mulheres, com claras desvantagens para as últimas. Tal significa que, embora a “feminização da política”, provocada pela Lei da Paridade, já tenha gerado algumas mudanças, continua a ser um mundo fortemente genderizado, ainda que esta visão seja mais forte entre as entrevistadas do que entre os entrevistados.
A título ilustrativo, há um consenso entre as entrevistadas e os entrevistados do PS (partido promotor desta lei), relativamente à existência de mudanças na política, mas não quanto ao que, de facto, mudou: enquanto os homens referem já perceber várias mudanças, nomeadamente no que concerne à disputa de lugares, à linguagem utilizada, ao trato no confronto parlamentar, à agenda política e, até mesmo, ao nível do poder e da tomada da decisão; as mulheres admitem só perceber mudanças ao nível da aparência (e.g., da indumentária) e das ideias.
Em geral, é partilhada a ideia de que a Lei da Paridade serviu para abrir as portas e dar espaço às mulheres na política. Mas as entrevistadas defendem que este mundo permanece masculino, assegurando que o poder continua nas mãos dos homens e que as mulheres se percebem (e continuam a ser percebidas) como “o outro”; e a sentir-se muito inseguras, até porque continua a haver uma elevada vigilância do seu desempenho; a ser sujeitas a um maior escrutínio do que eles (continuando a dever provar que têm competências); a ser sujeitas a sanções informais; a encontrar mais obstáculos, apesar das suas qualificações; e a ter poucas ‘redes informais’. Além disso, é a elas que continua a caber a questão da “conciliação” da vida política e da vida familiar; continuando a carregar a chamada “dupla jornada de trabalho”.
Em suma, 10 anos depois da implementação da lei, ainda não são percetíveis mudanças claras na forma de fazer política, nem nos jogos e estratégias de poder. Percebe-se que os homens continuam a ter mais “redes informais” e a fazer lobbying (são os chamados “clubes masculinos”), cooperando bastante mais entre eles do que o fazem as mulheres. Tal coloca as mulheres políticas em desvantagem, porque, como ainda não conseguiram construir e fortalecer redes, também não conseguem construir relações de poder ou de influência tão facilmente como eles.
Talvez por essa razão, é agora mais consensual que, na prática, a Lei da Paridade foi, e continua a ser, indispensável, um passo decisivo na atenuação das desigualdades de género existentes na política, contribuindo para melhorar mais rapidamente a qualidade da democracia.
Este ano, as eleições autárquicas constituem mais uma oportunidade de os partidos políticos mostrarem que o “espírito da lei” foi efetivamente interiorizado, caso contrário, torna-se imperativo o recurso a estratégias alternativas promotoras de uma democracia mais plena. Para já, as notícias que nos vão chegando sobre algumas das candidaturas trazem-nos algum alento, parecendo ter havido uma espécie de “efeito de contágio” positivo entre os vários partidos, mas fiquemos vigilantes.